PRISCYLA BETTIM & RENATO COELHO + MONICA DELGADO & IVONNE SHEEN
10.30.2020 - 11.30.2020
Os retratos de Priscyla Bettim e Renato Coelho: Entre cidades e interioridades
Curadoria de Ivonne Sheen e Mónica Delgado (Desistfilm)
O retrato pode ser abordado de forma ampla; pode estar em diálogo com contextos temporais e espaciais, com ambientes de formas objetivas e subjetivas. Pode assumir a forma de uma etnografia que, dependendo das intenções dos artistas ou realizadores, poderá dar novos valores às realidades que vão sendo retratadas.
Porém, por meio da experimentação, essas abordagens humanas têm o potencial de extrair essências poéticas que não se assemelham a nenhuma abordagem social ou científica. A dupla brasileira de cineastas experimentais Priscyla Bettim e Renato Coelho segue essa lógica e consegue extrair, em alguns de seus curtas, a essência poética dos retratos. Eles transformam personagens em pessoas resgatando suas interioridades e observando suas memórias únicas e sensíveis em relação a seus respectivos espaços e territórios.
Trabalhando na Cinediario, a produtora que fundaram em 2013, os dois artistas criam imagens granuladas e esticadas em preto e branco em Super 8mm. Inspiradas em um determinado grupo de pessoas que habitam São Paulo, essas imagens são uma contribuição para a construção do imaginário de uma cidade textural e rítmica. Para esta edição do corrient.es, selecionamos três shorts. Um é dedicado a Roberto Piva e outro a Claudio Willer. Esses dois poetas compartilhavam não apenas um impulso rebelde e beatnik, mas também uma amizade - eram aliados, camaradas e gostavam do trabalho um do outro. Piva morreu em São Paulo em 2010, e Willer ainda mora lá. Ambas as suas obras literárias retratam a facilidade de ser, as fugas das cidades, o predomínio da intuição e dos sentidos e, sobretudo, refletem sobre vidas em constante experimentação, dentro e fora da poesia. Esta relação entre vida e experimentação é observada a partir dos olhos e sensibilidades da Bettim & Coelho, como um ritmo caótico de corpos e vozes numa cidade poderosa e vibrante. O terceiro curta é, em comparação com outros filmes da dupla brasileira, um retrato poético mais calmo da cantora-compositora e atriz trans Verónica Valenttino.
VISÃO 2013 PARA ROBERTO PIVA | Super 8mm | São Paulo, Brasil | 2‘ | 2013
Uma versão subversiva das sinfonias urbanas do passado, com anti-ecos a São Paulo, Sinfonia de uma metrópole (1929) de Adalberto Kemeny e Rudolpho Rex Lustig foi inspirada no clássico Berlin, Symphony of a City (1927) de Walter Ruttmann. O curta-metragem da Bettim & Coelho homenageia Piva em relação à cidade brasileira. Nos versos de seu poema “Visão de São Paulo à noite”, incluído no livro Paranoia (1963), Piva mergulha no frenesi da cidade, relacionando-se com ela desde as falésias da loucura. Multidões, caos e edifícios que dão substância a um cotidiano decadente, rápido, absorvente e caótico; uma vida onde há espaço para rebelião. A cidade se reflete em espelhos riscados e quebrados, ritual que se repete em várias ruas, invocando e homenageando o espírito de Piva, que cospe e sente a cidade nos esgotos da poesia. Subjetividades vistas a partir de uma não-reflexão do lugar que habitam. Uma frase de Piva aparece em um papel em chamas: “Eu só acredito em um poeta experimental com uma vida experimental”, porque mesmo aquelas palavras incendiárias têm que ser enfrentadas, reinventadas. Essa ação também fundamenta a ausência de Roberto Piva, as palavras se transformam em fumaça e, embora aparentemente desapareçam, também se integram ao ambiente, integram-se ao espírito dos dois cineastas brasileiros. Uma homenagem a um poeta que faz falta, mas também um epítome visual e sonoro de explosões, vida noturna e rock que se invoca através do autorretrato, da exploração frenética da cidade e de suas luzes.
A PROPÓSITO DE WILLER | Super 8mm | São Paulo, Brasil | 18’ | 2016
São Paulo parece diferente pela voz e pelos poemas de Claudio Willer, embora proceda dos mesmos terrenos transgressores que possuíram Roberto Piva. Neste curta, as imagens poéticas de Willer e sua voz vestem as ruas, os céus, as avenidas. Aqui está Willer, o grande poeta e lenda viva da geração dos anos 60, diante das câmeras e nos deixando entrar em seu universo que Priscyla Bettim e Renato Coelho abordam como um encontro poético, em que o cinema experimental se torna um poderoso catalisador de sua poesia. A partir de uma abordagem erótica e pessoal, os cineastas dão substância ao que Willer afirma ... ou talvez seja o contrário: são as imagens que convivem livremente com o campo sonoro das palavras e da música. A errância experiencial na paisagem urbana e natural, como eterno poder da poesia, como força que atravessa o espaço e o tempo, como a luz das estrelas. Como se os poemas de Willer os movessem como um impulso vital. Com a incerteza do meio analógico, os cineastas abordam a vitalidade dos poemas como contingências que os prendem. Este é um ato de simbiose ou uma dupla intenção poética, onde os corpos do poeta, dos cineastas e de São Paulo se expandem e se contraem, como matéria viva. A presença de Willer, seu rosto e sua corporalidade, nos reencontram com a complexidade da subjetividade poética, como universos que dialogam com seu meio de forma subversiva e transformadora.
SEM TÍTULO #2 (VERÓNICA) / Super 8mm / São Paulo, Brasil / 2' / 2020
Na mesma linha dos poemas de Roberto Piva, Verónica Valenttino emerge da escuridão da noite de São Paulo como uma subversão transgressora e sensual. Neste curta-metragem, o rosto da cantora-compositora e atriz trans paulistana é acompanhada pelas melodias de um piano melancólico de intensidades profundas (composta por Arrigo Barnabé) e, na parte inferior do quadro, alguns flashes de luz da cidade. Em um chiaroscuro de alto contraste, o foco principal está no rosto e no gesto; vemos Veronica fumando enquanto faz uma pausa em uma noite tremendamente escura. Uma pausa na cidade, um momento íntimo, um ritmo lânguido que nos leva a contemplá a cidade como uma fera calma e noturna. Em pouco mais de dois minutos encontramos um perfil, a pegada de uma cidade, uma decisão e um olhar. Neste filme, Priscyla Bettim e Renato Coelho partilham uma forma única de retratar, à maneira dos testes de ecrã de Andy Warhol, para captar outra modalidade de glamour e subversão com o gesto final de Verónica, uma diva imperiosa, cheia de força vital.
Priscyla Bettim é cineasta, pesquisadora e professora. Dirigiu mais de uma dezena de curtas metragens, como “Visão 2013 para Roberto Piva” (2013) e “Livro de Haikais” (2014), entre outros, onde procura explorar seu interesse pelo cinema experimental analógico. É mestra e doutoranda em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Atualmente trabalha na pós-produção de seu primeiro longa-metragem como roteirista e diretora, "A cidade dos abismos", em parceria com Renato Coelho.
Renato Coelho é cineasta e pesquisador. Realizou curtas metragens em Super 8mm como “O cinema segundo Luiz Rô” (2013), “Trem” (2015) e “A propósito de Willer” (2016, em parceria com Priscyla Betttim). É mestre e doutorando em Multimeios pela Unicamp. Atualmente é coordenador e professor na graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi (UAM-SP). Em livro, publicou “O cinema e a crítica de Jairo Ferreira” (2015) e “Luiz Rosemberg Filho - Encontros” (2015). Sócio da produtora Cinediário, pela qual trabalha na finalização de seu primeiro longa metragem como diretor e produtor, “A cidade dos abismos” (em parceria com Priscyla Bettim).
Ivonne Sheen é artista audiovisual, crítica de cinema e professora. Em seus trabalhos e escritos, ela se relaciona principalmente com expressões audiovisuais experimentais, como exercícios poéticos e políticos. Ela escreve para a revista online Desistfilm. Co-dirige "Taller Helios", onde dirigiu workshops de técnicas fotográficas experimentais e cinema artesanal no Peru. Seu curta-metragem "Con cierto Animal" (2018) foi exibido internacionalmente em festivais e mostras de filmes experimentais.
Mónica Delgado é crítica de cinema, comunicadora e investigadora. Ela co-dirige a revista online Desistfilm. Ela escreveu o livro Maria Wiesse en Amauta: as origens da crítica de cinema no Peru. Tem mestrado em Letras com especialização em Estudos Culturais e foi diretora do Cine Clube da Universidade de Ciências e Humanidades de Lima e colunista do Wayka.pe. Foi jurada em diversos festivais internacionais como Valdivia, Olhar de Cinema, Curtas de Belo Horizonte, Ficunam, entre outros.